LITURGIA DO CULTO
27 DE SETEMBRO DE 2015.
O culto divino, para nós, cristãos evangélicos, é a
fonte e o ápice da vida cristã. Na verdade, o culto que prestamos a Deus é
exatamente o ponto desde o qual nós entendemos a vida e a história.
Todas as coisas são compreendidas por nós dentro do esquema
Criação-Queda-Providência-Redenção. Isto quer dizer que nós cultuamos um Deus
soberano que tem o absoluto controle sobre todas as coisas e todas as causas.
Que da Criação por Ele realizada, à Queda, isto é, a entrada do pecado e da
morte no mundo, por Ele permitida em seus decretos secretos, aos meios pelos
quais ela administra a sua Graça, geral e especial, para o sustento do universo
inteiro, até chegar à Redenção dos eleitos e a criação dos novos céus e nova
terra, tudo está sob o invencível e indefectível governo de Deus. Esta compreensão da história sendo governada
por Deus e da recapitulação de todas as coisas em Cristo não nos isenta de
nossa responsabilidade moral e nem de nossa ativa participação na história.
Antes, pelo contrário, porque participamos da vida em Deus pelo batismo,
participamos também de sua atividade no mundo refletindo o seu caráter santo,
justo e amoroso. Logo, a reta celebração dos louvores de Deus e de seus grandes
feitos nos compromete a viver como quem o tem assentado no trono presidindo e
governando todas as coisas e sob quem estamos a serviço. Cultuá-lo significa proclamar o
seu Reinado no mundo e a reivindicação que Ele faz de todas as coisas para o
seu Reino de justiça, paz, vida e amor. Assim, onde houver violência,
corrupção, injustiça, fome, guerra, morte eaviltamento
da dignidade da pessoa humana em sua imagem como semelhança com Deus, ali mesmo
os súditos do que está sentado no Trono, são enviados em nome do seu Rei, para
combater e transformar estas realidades a partir da visão que recebem das
coisas vistas quando os céus estão abertos no culto solene. Evidentemente que
não estou falando de uma experiência mística, pelo menos não naquele sentido
fantasioso do termo. Os céus são abertos para nós quando as Escrituras são
expostas diante de nós. Temos a visão do Trono e d’Aquele que nele se assenta
quando a Palavra de Deus, única regra de fé e vida, quando a Bíblia, a única
norma não normalizada por outra, é pregada ao nosso entendimento e ao nosso
coração: “para que experimenteis qual
seja a boa, agradável, e perfeita vontade de Deus” (Rm 12.2), pois assim
sabemos que: “Lei é santa, e o Mandamento
santo, justo e bom” (Rm 7.12). É exatamente aqui que nos submetemos ao
Reinado de Deus em Cristo. É exatamente assim que conhecemos qual a sua vontade
sobre a criação e o destino último do homem. É assim que descobrimos que
enquanto a história caminha para o seu cumprimento final na consumação e
radical transformação de todas as coisas, desde já somos convocados á iluminar
esses dias, o nosso mundo, a nossa cultura, a nossa sociedade pelo esplendor da
verdade que emana de Cristo, de seu Evangelho, de sua lei Moral, de seus
benefícios alcançados pela vitória da Cruz. Não fosse o culto, o cristianismo não seria
mais que mais uma filosofia ou moralidade dentre tantas outras. Não
fosse o culto, a visão que Ele nos proporciona do que está no Trono, nossa
compreensão da realidade seria de um existencialismo romântico, porém vazio e
sem sentido como tudo o mais que não tem Deus. Não fosse a contemplação das
últimas coisas antecipadas na liturgia de cada culto, a vitória de Cristo e de
seu povo, nossos esforços nesta vida e toda a nossa história seria como a sorte
de Sízifo, personagem da mitologia grega que é condenado a uma tarefa
de grande esforço, mas absolutamente sem sentido no final das contas. Aprenda a dar sentido e coerência para a sua
vida e história, aceite este gracioso convite: “Vinde, cantemos ao Senhor com júbilo...” (Sl 95.1), porque “Reina o Senhor. Regozije-se a terra...”
(Sl 97.1).
O ponto mais alto de uma reunião de adoração em uma
igreja genuinamente evangélica é a pregação da Palavra. Podemos afirmar com toda a
convicção possível que um culto evangélico é um culto da Palavra.
Infelizmente os nossos dias parecem desmentir esta afirmação. Infelizmente
parece que algumas profecias dos apóstolos se cumpriram entre nós: “Porque virá tempo em que não suportarão a sã doutrina; mas, tendo comichão nos ouvidos,
amontoarão para si doutores conforme as suas próprias concupiscências” (2
Tm 4.3); “Sabendo primeiro isto, que nos
últimos dias virão escarnecedores, andando segundo as suas próprias
concupiscências” ( 2 Pe 3.3). E, o resultado inevitável de quando a pura
Palavra de Deus não é nem desejada e nem pregada, é que o culto se torna um
palco para todo tipo de excentricidades. Há mesmo até pessoas bem intencionadas
que desejando um culto mais palatável, concedem a maior parte do tempo
disponível para corais, solistas, grupos de louvores, danças, coreografias,
filminhos motivacionais e etc. O tempo restante fica por conta de uma leitura e
de uma exposição breve, sem profundidade e controlada exatamente pela
expectativa do que veio antes, entreter os expectadores. Nos casos mais graves,
tudo o que há na reunião de oração são testemunhos, expulsão de demônios, maus
espíritos e infindáveis testemunhos de curas, milagres e vitórias, sobremaneira
na vida financeira. Infelizmente a saturação destas coisas na grande mídia
provoca pelo menos duas reações difíceis de aceitar. Na primeira delas muitos
cristãos sérios e não poucos líderes sentem-se tentados porque veem o
crescimento destas tais comunidades, ou pelo menos, o aparente sucesso destes
‘impérios’ ministeriais e os invejam e imitam. A segunda reação é aquela que
leva ‘os de fora’ a nos igualar a todos.
Por isso, muitos têm resistência em fazer-nos uma visita, outros têm até medo
de serem submetidos a qualquer um desses excêntricos expedientes citados até
aqui. Todavia, num culto genuinamente evangélico e umbilicalmente ligado à
tradição Reformada, a leitura e a exposição da Palavra têm a primazia, como diz
o pastor e teólogo alemão Dietrich Bonhoenffer: “Nosso louvor e orações precisam estar de acordo com as Escrituras, e,
acima de tudo, a Palavra pregada tem de servir ao propósito de agradar a Deus,
porque o sermão é o aspecto mais importante da adoração, visto que por
intermédio dele o Criador do universo fala a seres insignificantes”. Em nosso culto a Palavra de Deus recebe tanta
ênfase porque entendemos que onde ela não é pregada a verdade não pode
prevalecer. Onde a palavra não é exposta Cristo não pode prevalecer e fora de
Cristo nada existe senão ídolos. Onde a palavra de Deus não é pregada
com fidelidade, integridade e corretamente pelo ministro, não há poder
sobrenatural que de fato venha da parte de Deus. Tudo o que há são ilusões e
sugestões vindas da carne ou do maligno. Somente a palavra de Deus produz fé
(Rm 10.17), santificação (Jo 17.17) e comunhão real com Deus (Jo 8.31; Jo
15.7). Uma boa leitura para descobrirmos quais os efeitos nefastos de uma
religião, de um culto intentado a ser prestado a Deus, mas que rejeita ou
negligencia a escuta atenta da palavra de Deus é o livro de Amós. Este profeta
menor aponta com o seu dedo em riste os grassos pecados de Israel num tempo de
muito fervor religioso. Os santuários e o templo estavam abarrotados de
pessoas. Muitas peregrinações a lugares sagrados. Muitos ritos e cerimônias.
Contudo os pregadores eram proibidos de falar. Os profetas não podiam entregar
a mensagem (Am 5.10). O que aconteceu com este povo dado a milagres e
cerimônias, mas que não ouvia a Palavra? Imoralidade sexual degradante (Am
2.7); Juízes corruptos (Am 2.6-7; 5.12); Opressão (Am 3.9; 4.1; 8.4-6;
5.11-12); Exploração do pobre (Am 5.11-12); Insensibilidade para com os
sofredores ( Am 6.6); Não suportavam a verdade (Am 5.10). Estamos em grande
perigo quando qualquer outra coisa ocupa o lugar mais alto, a posição mais
elevada ou é mais desejada que a Palavra de Deus lida e exposta em nossas
assembleias litúrgicas. Ouçamos o gentil convite de Amós: “Buscai o Senhor e viverei” (Am 5.6). Busquemos o Senhor em sua
Palavra quando a igreja estiver reunida, pois é aí que o Espírito fala (Ap
2.29).
Uma das coisas que mais ouvimos quando uma pessoa nos
visita aos domingos é: “Nossa, como o
culto de vocês é diferente. Diferente do que eu esperava. Diferente de tudo que
já vi”. Confesso que não poucas vezes não sei bem o querem dizer com estas
coisas. Mas, uma coisa eu sei, quando nos reunimos como igreja o que mais
desejamos é fazer um encontro com Deus. Não é uma questão trivial pela qual nos
reunimos, é antes um encontro de pecadores e um Deus santo, entre um Rei
magnífico e seus súditos. Adoração para nós cristãos reformados não é
um tempo para “relaxar” com Jesus, participando de um grande e animado evento
social que visa a atender as nossas carências, como se fôssemos consumidores.
Em lugar disso, é o momento em que o infinito e o todo-santo Deus do universo
condescende conosco em um encontro na graça e no poder do Espírito Santo
através dos meios de graça. Por isso, de nossa parte, não se trata do que nós
desejamos fazer, não se trata de nós, a nossa adoração não pode ser conduzida
pela cultura, pela moda, pelas tendências do mercado do entretenimento que
facilmente tem se misturado e confundido com o mercado religioso. Nossa
adoração só pode ser conduzida e inspirada pelas Escrituras e a postura ideal
de nossa parte neste encontro é a reverência: “Portanto, já que estamos recebendo um Reino inabalável, sejamos
agradecidos e, assim, adoremos a Deus de modo
aceitável, com reverência e temor”
(Hb 12.28). Este encontro significa também ruptura com o mundo, ruptura moral e
espiritual, se não de outra sorte o que fazemos quando nos reunimos outra coisa
não é que um “Culto de si mesmo e de
falsa humildade” (Cl 2.23 b), isto é, um culto para nós mesmos, onde somos
o centro das atenções e tudo é feito pensado em nós. Um culto é um encontro com Deus
quando ele é saturado das Escrituras. Onde a Palavra de Deus convoca
para a adoração e ela mesma é o que temos a dizer a Deus e sobre Ele. Onde as
orações que elevamos aos céus são substanciadas pala Palavra que lemos e
recitamos, mas porque também as encerramos invocando o nome do Verbo no final
de cada súplica. Há encontro onde esta mesma Palavra denúncia o pecado alojado
em nosso coração, ordena que o confessemos e o abandonemos e nos anuncia a
certeza do perdão em Cristo. Nosso culto é um encontro com Deus quando o que
cantamos ou é a Palavra mesma de Deus ou os nossos cânticos são claramente nela
inspirados. Este encontro se torna mais real quando do púlpito o ministro
anuncia de maneira solene: “Assim fala o
Senhor” e a Palavra é proclamada e depois exposta. Nesse momento, como nas
assembleias do Antigo Testamento, como Jesus no Novo às multidões e aos seus
discípulos, renovamos solenemente a Aliança e somos introduzidos nos mistérios
do Reino dos Céus. Nosso encontro fica mais íntimo á medida que o tempo passa e
quando a Palavra se torna visível no sacramento da Ceia, agora nossos olhos vêm
o Senhor sob o véu do sacramento. Nossas mãos apalpam o verbo da vida (1Jo 1.1)
e nossa boca experimenta a doçura do céu tipificados nos alimentos
“eucaristizados”. Por que enfatizamos que o nosso culto é essencialmente um
encontro pessoal e comunitário com Deus? Porque é exatamente este encontro o único
capaz de devolver sanidade à nossa mente, serenidade a nossa alma, descanso ao
nosso coração, equilíbrio às nossas emoções e aos nossos afetos, e refazimento
de nossas forças físicas. Por isso o nosso culto deve ser diferente de tudo o
que há no mundo, diferente de tudo o que há na religião, na cultura e etc.
Porque necessitamos elevar o nosso coração para além de nós mesmos, precisamos
de um evento que seja maior que a nossa existência, precisamos de um encontro
que transcenda a nossa experiência cotidiana. E Deus sabendo disso,
providenciou o culto, prescreveu o “rito”, ordenou os elementos, e ungiu o
sacerdote para nos conduzir e servir neste encontro, o Senhor Jesus Cristo, a
quem seguimos, em quem habita a plenitude da divindade, o templo onde Deus
habita, Palavra de quem a vida eterna nos é comunicada. Nosso culto é diferente
não exatamente pelo que fazemos, mas por quem nele encontramos.
Um dos títulos mais belos para um livro que já li é: A
Santíssima Trindade é a melhor comunidade, escrito pelo ex-frade franciscano
Leonardo Boff. Conquanto se possa discordar ou desconfiar de algumas afirmações
contidas ali, eu mesmo gostaria muito de ter escrito algo com este título. De
fato, se a igreja deve refletir em sua missão e em sua natureza o caráter deste
Deus Triúno é porque Ele mesmo é o melhor modelo de vida comunitária e de
relações marcadas pelo amor, pela comunhão, pela unidade perfeitíssima na
diversidade e pela solidariedade na missão. Então, não há mesmo melhor
comunidade do que a Santíssima Trindade e a Igreja visível e em missão no mundo
deve ser seu ícone, isto é, a sua imagem. Daqui, se conclui que se alguém quer
saber como Deus é e com o que Ele se parece, como são as suas feições, de
alguma maneira misteriosa, porém real. Por uma visão embaçada, contudo,
verdadeira, deverá olhar para a comunidade dos discípulos, para a igreja
estabelecida sobre a terra que está em estado permanente de missões
participando ativamente na Missão de Deus no mundo. Uma igreja trinitária é, antes do
mais, uma comunhão de pessoas do que uma instituição. É uma comunidade
profundamente relacional e toda a sua atividade deriva desta realidade.
Assim como na Trindade onde o Pai, o Filho e o Espírito Santo vivem numa eterna
e fecunda relação de amor e comunhão, a igreja deve reproduzir em seu seio esta
vida. A vida da comunidade proclama o Evangelho ao mundo em forma de testemunho
e sinal de contradição. Em nossa cultura e sociedade marcadas pelo
egoísmo, pela brutalidade, pela desagregação e por relações utilitaristas,
descartáveis e excludentes, a igreja é convocada a viver na contramão destas
coisas. Olhando para o mistério da Trindade a igreja aprende as lições de uma
relação vivida no amor que se abre e se entrega totalmente ao outro, no amor
que é serviço em promoção da vida e participação e inclusão plena de todas as
pessoas na missão. Todos são igualmente importantes, ninguém nunca é excluído
de coisa alguma, tudo nesta relação fica subordinado ao amor que se deve
manifestar um ao outro. Olhando para a
Trindade aprendemos que há o primado do ser, da pessoa em si mesma sobre todas
as outras realidades. A pessoa do Pai é a realidade mais importante para o
Filho. A pessoa do Filho é a causa de toda alegria e prazer do Pai. Pai e Filho
desejam a presença do Espírito e este por sua vez preocupa-se com a glória de ambos.
Numa comunidade que espelha a Trindade a pessoa deve preceder a organização, a
instituição e os cargos e ofícios. A realidade existencial do outro é o bem
maior da comunidade e a sua razão de ser em missão. O irmão deve ser acolhido,
amado, valorizado, defendido em sua dignidade, protegido em suas carências e fraquezas
e nunca se ver exposto ou aviltado por causa de suas imperfeições e mazelas. Na
Trindade bendita, as pessoas recebem honra e glórias recíprocas. Na Igreja a
verdade não pode ser outra, devemos zelar pela honra e pelo bom nome de nossos
irmãos. Devemos nos rivalizar em honra-nos uns aos outros e não em
sobrepujarmo-nos uns aos outros em títulos e honrarias meramente humanos.
Olhando para a Trindade aprendemos o valor do diálogo profundo e contínuo. Pai,
Filho e Espírito Santo vivem em estado eterno de Concílio, de abertura, de
escuta, de acolhida. Em uma igreja imagem da Trindade não há lugar para
pequenos ditadores, lideranças despóticas, prevalência da vontade calcada em
quaisquer formas de poderes, quer econômicos, sociais, culturais, ou o peso da
tradição de uma família ou algo do gênero. Assim como na Trindade, todos devem
ser ouvidos. Todos tem o privilégio-dever de falar, de propor, de participar
das decisões e depois de assumi-las como suas. Na Trindade não há vencidos e
vencedores. Na trindade não há quem vença pelo “soco na mesa” ou por
falar mais alto. O diálogo trinitário é construído com base na lealdade, no
amor, na interdependência e na verdade. A igreja não pode desejar nada diferente
para fazer a diferença no mundo. Por último, sem esgotar a riqueza do assunto
por falta de espaço aqui, na Trindade tudo é feito com a mais perfeita
solidariedade. A Missão de um é a Missão de todos. Não obstante cada um tenha
tarefas muito específicas, todas as três pessoas da Trindade estão
comprometidas na Missão de cada um. A igreja tem o dever de reproduzir em sua
atividade o mesmo. Somos todos igualmente convocados, equipados e enviados, sem
exceção. Embora cada qual seja destinado a realizar uma função, nossos
ministérios são inextrincavelmente interdependentes. O Êxito de um é o êxito de
todos. A dificuldade de um é um desafio para todos. Que a Trindade seja o nosso
modelo. Que a nossa igreja seja uma imagem da Trindade.