BOLETIM
CONGREGAÇÃO PRESB. DO CALVÁRIO
O teólogo francês João Calvino gostava de ensinar, com
sólida base bíblica, que o coração do homem é uma fábrica de ídolos. Sempre que
o nosso coração se distancia milímetros de seu apego a Cristo, inevitável e
imediatamente ele fabrica uma incontável multidão de deuses que desejam lutar
dentro dele por cada nicho e cada altar, eclipsando assim a figura de Jesus
Cristo. Também com uma data tão auspiciosa como a abertura das comemorações dos
500 anos dos inícios da Reforma Protestante, pode e seguramente, nos oferece a
ocasião para grosseira idolatria. Há mesmo quem esteja até festejando o fato de
o Papa Francisco participar dessas comemorações na Suécia ou ainda sinta-se
valorizado e reconhecido porque um grupo de peregrinos luteranos foi recebido
com uma imagem de Lutero na Sala de audiências Paulo VI no Vaticano um dia
desses. Entretanto, quais são os reais perigos de uma ‘Reformalatria’? O
primeiro deles me parece ser ainda aquele de pensar que antes de 31 de outubro
de 1517 não havia cristianismo, igreja e evangelho no mundo. Acreditar que do
capítulo final de Atos 28 até os dias de Lutero a obra de Deus permaneceu numa
espécie de animação suspensa e a história da igreja não passa de uma tragédia
religiosa repleta de hereges e ofensas dirigidas a Deus em forma de culto. Na
verdade, a Reforma aconteceu porque esses e outros erros existiam mesmo. Mas
existiam não num vácuo, mas na dinâmica da vida da igreja estabelecida que
durante a sua história produziu pela graça de Deus homens e obras
extraordinários e a Reforma apenas intentou, vinda do mesmo Deus,
corrigir tais erros. Mesmo porque, os Reformadores eram homens que viviam
dentro daquela igreja histórica.
O segundo perigo é o da canonização dos Reformadores. Pensar e acreditar quer
eram todos perfeitos, homens que viviam em virtudes extraordinárias, quase
super-humanos. Atribuir a eles inerrância e infalibilidade porque chegaram a
algumas posições e interpretações bíblicas ou doutrinárias, faz-nos incorrer no
mesmo crime e erros daqueles que invocam a Tradição ou o magistério Papal como
autoridade equivalente às Escrituras. Isso também é idolatria. Não
restam dúvidas, nossos Reformadores foram usados por Deus como instrumentos
para o início e a continuação e sistematização da Reforma e muitas de suas
contribuições são perenes. Mas eles não inventaram a roda, talvez, no máximo a
descobriram e melhoraram o seu uso. Um terceiro perigo é o de se
desejar repetir acrítica e anacronicamente o estilo de culto, o tipo da
liturgia, cantos e usos e costumes da igreja dos séculos 16, 17 e 18, como os
únicos aceitáveis por Deus e os únicos capazes de dar à Igreja uma identidade
cristã. É um erro pensar que devemos pregar usando de maneira absoluta os
mesmos métodos e conceitos de comunicação e transmissão de conteúdos desde o
púlpito ou a mesma didática da época para a catequese (o conteúdo, esse sim,
perene). Também é um erro pensar numa forma única de estética para o templo e a
própria ação litúrgica. Evidentemente que os elementos de culto empregados
pelos reformadores são indeléveis e inegociáveis, mas não porque fossem por
eles estabelecidos, mas porque são Bíblicos e se encontram presentes nos dois
cânones das Escrituras e foram firmemente estabelecidos por Deus. Uma quarta
sedução à idolatria é concluir que em nossos dias não existam contribuições
válidas para a igreja e que tudo se encontra tão perdido e corrompido que só
uma volta radical ao passado glorioso de nossos heróis pode nos salvar. Além de
pretencioso esse pensamento é ingênuo, para não dizer infantil. Os nossos dias
trazem consigo não só inúmeros e inimagináveis oportunidades, como também
ferramentas maravilhosas, um acúmulo de conhecimento sistematizado que os
Reformadores jamais sonharam possuir. Pesquisas científicas avançadas nas áreas
da história, arqueologia, línguas antigas, antropologia cultural e etc., nos
fazem penetrar com muito mais profundidade as maravilhas da Bíblia. Novas
Universidades, novos e equipados seminários, a enorme profusão de editoras e
novos autores, teólogos e pesquisadores nos enchem de esperança quanto ao
futuro da Igreja. Mas, nenhuma idolatria é mais perigosa do que esquecer que Cristo é o
Senhor e Cabeça da Igreja. Que Ele é o mais interessado em sua eterna
juventude, vitalidade, pureza e fidelidade. Que Ele mesmo é quem
empodera essa igreja por meio do seu Espírito, que levanta, comissiona e envia
homens, pecadores e frágeis, para continuar reformando e restaurando a vida da
igreja até o dia em que Ele mesmo, em pessoa, virá busca-la e a conduzirá para
um tempo em que as Reformas já não serão necessárias e nem mesmo relembradas.
Comemoramos nesse mês de outubro os 499 anos da
Reforma Luterana, movimento que deu início à Reforma da Igreja, desde
Wittemberg para todo o continente europeu. São quase infinitas as possiblidades
de abordagem e exploração deste tema. Da política, passando pelas artes,
filosofia, ciências, economia, antropologia, religião, não houve área da vida
humana que não fosse tocada pelas consequências nascidas da redescoberta das
Escrituras. Da reforma do culto segundo a Palavra surgiu uma nova compreensão
sobre o homem e sua existência. Talvez tudo tenha começado por um fenômeno
que ficou conhecido entre os eruditos por ‘desmagiamento’ da realidade. Na
idade média, como a Teologia, a Igreja e a Religião consistiam no centro da
vida do homem, mas uma Teologia sem a Bíblia, uma Igreja carcomida pela
corrupção e pela sede de poder e uma Religião sem entendimento, produziam uma
cosmovisão supersticiosa e escravizante. Tudo era entendido em termos
de maldição, pecado, demônios e aquilo que não podia ser explicado era reputado
como uma realidade sobrenatural, geralmente de mau agouro. Assim, toda a vida
era passada em temores, medos infundados e desarrazoados. O casamento era
considerado um pecado consentido. A mendicância e a pobreza indignas, uma
questão de vocação e penalidade, bem como o trabalho braçal uma punição, uma
maldição. A riqueza e a nobreza um direito divino que legitimava o
autoritarismo e as muitas desumanas arbitrariedades dentro e fora da Igreja. O
Papa, os bispos e padres eram tomados por seres quase angélicos, divinos, e que
estavam acima de qualquer questionamento. A santidade só era possível a esses,
aos monges, freiras e um ou outro excêntrico. Todos os demais estavam entregues
a uma espécie de loteria ou esperavam ser sorteados num tipo de consórcio para
a vida eterna. Os mais abastados
e alguns desesperados tentavam comprar o céu mediante as indulgências. Claro, o
poderoso e inescrupuloso clero da época associado a outros poderosos
preocupados com o seu ‘status quo’, lucravam muito com essa ignorância e esse
estado mágico das coisas. A Reforma não tirou a Teologia, a Igreja e a
religião do centro da vida das pessoas, não. O que a Reforma fez foi dar a
inteligência da fé pelo conhecimento das Escrituras, a fim de que o homem
pudesse ter uma compreensão moldada pelas verdades da Palavra. Isto é,
fez ver ao homem qual era o plano original de Deus deturpado e degenerado por
mentes e corações vazios de Deus e de seu conhecimento. Com a retomada do
estudo e da pregação das Escrituras, a Teologia, a Igreja e a Religião foram se
purificando e voltando às suas raízes. Como consequência inevitável o casamento,
por exemplo, deixou de ser visto como um mal menor, um pecado consentido, mas
foi assumido como uma bênção paradisíaca a que todos tinham o direito de
desfrutar para serem felizes. A pobreza e a mendicância deixaram de ser
uma vocação e um infortúnio fatalista e passaram a ser tratados como uma
questão de justiça social, política pública e dever da igreja e dos abastados
em socorrer. O trabalho, interpretado como maldição, como peso, foi reconhecido
como um meio para a realização da sublime vocação à santidade e o meio próprio
e legítimo de proteção social, justiça e promoção da vida. O clero
passou a ser visto como a vocação especial de alguns homens comuns, pecadores
redimidos, que eram reconhecidos, aceitos e autorizados pelos próprios
cristãos, para que na autoridade de Deus e por delegação dos fiéis,
comissionados e encarregados do pastorado. Homens cuja a autoridade não vinha
de um posto, cargo, título ou comenda, mas da humilde e nobre fidelidade ás
Escrituras no serviço aos irmãos. Os
“super crentes”, os excêntricos, os monges e as freiras, logo perderam sua
áurea e passaram a destoar da paisagem. Também uma nova visão política aos
poucos foi surgindo. O jugo de Roma quanto a religião também desprendeu-se dos
reis, príncipes e governantes que aderiram à Reforma. Muitas cidades-Estados,
bem como territórios aderiram à um sistema político, que pode ser entendido,
como a semente da democracia moderna. Um sistema em que o povo se fazia
representar por pessoas ilustres e ao mesmo tempo, podia escolher sob quais
leis queria viver. A história comprova que uma sociedade que reputa à Teologia,
a Igreja e a Religião uma total e completa irrelevância, a ponto de bani-la,
como o fizeram os Estados totalitários, falham tanto quanto àqueles que desejam
uma teocracia que não se deixa moldar e oxigenar pelas Escrituras. Da Reforma
aprendemos que qualquer um que queira sujeitar os homens a si usando a
Teologia, a Igreja ou a Religião, peca contra Deus e torna esses mesmos entes
desnecessários e perigosos até. A Reforma desejou devolver ao homem uma
consciência iluminada e ataviada apenas em Deus, para que cada um, depois de
conhecer a verdade, escolhesse de que maneira viveria melhor a sua liberdade e
sua história em face do mundo.
Vimos nas outras duas pastorais que há dois oficiais
na igreja que por disposição divina compartilham o governo e o pastorado da
igreja, o presbítero docente (pastor, um oficial especializado em ensinar e
pregar) e o presbítero regente (um membro nato da igreja eleito por ela para o
governo espiritual). Ambos compartilham e cooperam entre si, a seu modo, num
colegiado, o governo e o cuidado pastoral das ovelhas. Hoje trataremos de um
outro oficial igualmente imprescindível para a vida da comunidade de fé. Este
não participa efetivamente do pastoreio, do ensino e da disciplina da igreja,
mas coopera e possui autoridade para governar o povo de Deus com os
presbíteros. Participa ativamente do governo em forma de
socorro, assistência social, administração da justiça, administração dos bens
temporais da igreja e a manutenção da boa ordem, decoro e decência nas
dependências comuns da comunidade. Não são oficiais de uma categoria
inferior. Não há hierarquia na igreja reformada, em graus, como acontece na
igreja católica romana e na igreja anglicana, por exemplo. São oficiais que
possuem um chamado, uma ordenação e uma autoridade para o exercício de seu
ministério numa outra esfera. Suas prementes preocupações não são as do ensino,
da ministração da doutrina, de corrigir os erros doutrinários e vigiar e zelar
pela ortodoxia da igreja. Também não faz parte de suas ocupações habituais,
confrontar o pecado, admoestar, julgar, corrigir e disciplinar os faltosos, não
de maneira jurisdicional, como acontece no caso dos presbíteros. Dentre as mais
essenciais funções de um diácono, com base no livro de Atos dos Apóstolos
capítulo seis, é a proposição do evangelho em forma de socorro e cuidado dos pobres,
das viúvas, dos órfãos e andarilhos.
A apresentação da face social do Evangelho concretizada no atendimento das
necessidades humanas, materiais, básicas dos irmãos da igreja e também dos que
a ela se reportam com seus queixumes. É o exercício da misericórdia
combinada com o fazimento da justiça, de maneira generosa, transbordante e eficaz.
Cabe aos diáconos organizar a caridade e a justiça na igreja por meio de ações
concretas, planos de ação e condução de ministérios e organizações que captem
recursos, donativos, doações e voluntários para que não haja necessitados,
desassistidos e marginalizados, quer entre nós, quer ao nosso redor, na
sociedade onde estamos inseridos. Outra função preciosa que deve ser assumida
pelos diáconos é a administração dos recursos da igreja. Recursos para a
manutenção do templo, das dependências dedicadas ao ensino e a educação cristã
e o pagamento de funcionários e fornecedores. Os diáconos devem assumir o
controle, conservação, manutenção, reposição e aquisição de mobílias,
equipamentos, ferramentas, utensílios de cozinha, material de escritório e etc.
Essa atribuição é essencial para que os presbíteros, como pastores que são,
dediquem-se efetivamente ao pastorado, orando, ministrando a palavra, visitando
os lares, cuidando das ovelhas e fazendo avançar o Reino por meio do
crescimento sadio da igreja. Também a boa ordem, a paz e a tranquilidade do
recinto para o bom andamento do culto e das outras atividades é uma obrigação
dos diáconos. Para que pastores e ovelhas não tenham sua atenção comprometida
com os essenciais da palavra, no culto e no estudo, os diáconos, segundo o
turno de seus pares, devem atender e garantir que haja um ambiente propício
para a adoração e edificação. Claro, os diáconos, como cristãos que são,
maduros e frutuosos, também devem se ocupar da evangelização pessoal, do
discipulado e os que possuem dons naturais, do ensino na Escola Bíblica
Dominical, pequenos grupos e por aí vai. Visitar os pobres, consolar os
abatidos, encorajar os fracos e estimular os irmãos também são nobres ocupações
a que os diáconos podem e devem dedicar-se. Há mais no oficialato diaconal do
que ficar à porta, distribuir boletins, cuidar dos carros no estacionamento. Na
verdade, essas são funções para as quais a ordenação e a investidura não são
necessárias. Mas, as outras todas acima elencadas, são ações pelas quais o
exercício da autoridade em nome de Cristo, o diácono do Pai, são requeridas
para que os irmãos vivam no amor, pois como ensina o antiquíssimo hino “Ubi
caritas”, ‘onde o amor e a caridade Deus aí está’.