Quam Multis Thesibus
"Deus é que
tem sabedoria e poder; a ele pertencem o conselho e o entendimento” (Jó
12.13).
“Os planos
fracassam por falta de conselho, mas são bem sucedidos quando há muitos
conselheiros” (Pv 15.22).
O mês de outubro traz à reflexão os eventos da Reforma
Protestante. A data referencial é a de 31 de outubro de 1517, quando o monge
agostianiano Martim Luthero teria afixado suas ‘noventa e cinco testes’ às
portas da catedral de Wittemberg na Alemanha. O gesto de Martim não foi nenhum
desrespeito ou um ato de provocação ou soberba como erroneamente alguns
afirmam. Antes, Martim Luthero simplesmente usou com eficiência um meio de
comunicação e divulgação próprios à época. Às vésperas do dia de Todos os
Santos, uma data religiosa muito concorrida, com enorme afluxo de pessoas de
todas as classes sociais, o jovem sacerdote e monge quis convidar para um tempo
de conversas e debates as ideias mais inquietantes sobre fé e vida nos seus
dias. As campanhas de João Tetzel, um frade dominicano, que percorria cidades e
aldeias numa cruzada pela venda de indulgências e um bom lugar no céu roubava a
paz e desassossegava a vida pacata de muitas paróquias e ao mesmo tempo,
angustiava e atormentava as almas confusas e cheias de escrúpulos e temores sem
fundamento, de pobres e ignorantes que não possuíam recursos para assegurar a
sua salvação. Mas, como a ignorância das “coisas de Deus” não era exatamente
uma prerrogativa dos pobres, muitos da burguesia, aristocracia e até da
nobreza, cediam as impressionantes imagens do inferno produzidas pela
desesperançada pregação de Tetzel. Aqui se pode comprovar como uma religião sem
as Escrituras, sem a pregação genuína das Escrituras, pode ser uma fonte cruel
de escravidão e tormentos psíquicos e espirituais. Para facilitar o debate
Martim Luthero adiantou os pontos que desejava abordar e discutir com a
publicação de suas noventa e cinco teses,
que aliás, também teriam sido gentilmente encaminhadas para o bispo daquela diocese.
Os desdobramentos desde esses dias são evidentes, a incapacidade de diálogo, as
trocas mútuas de acusações, as perseguições, a ruptura da Igreja (nunca
desejada por Luthero), a recusa do Papa em acatar as contribuições dos
Reformadores (coisa que esporadicamente aconteceu pontualmente mais tarde no
Concílio Vaticano II e em alguma ou outra manifestação dos Papas de 1958 para
cá). Mas, como insinua o título em latim dessa pastoral, quantas teses mais
seriam necessárias para os dias de hoje? É certo que a Igreja necessita de
reforma. A Igreja Evangélica carece de reforma tão urgentemente como poderíamos
supor em relação a Igreja Católica. A Igreja Evangélica no mundo inteiro, em
todas as tradições, reformada, arminiana, pentecostal e as ondas carismáticas,
vivem dias difíceis. A fidelidade às Escrituras tem sido substituída pelo
pragmatismo. O importante é aquilo que dá certo, que atrai as multidões, que
fideliza a clientela, que atende aos gostos e às necessidades carnais dos
crentes. Por isso, o espaço que antes honrava a pregação expositiva deu lugar
ao ‘talk show’ (inclusive com Satanás em algumas agremiações), apresentações
infindáveis de testemunhos e depoimentos que mormente exaltam o carisma do
líder ou a campanha realizada. A Palavra também perdeu espaço para o
“louvorzão”, para o show gospel e suas ministrações rasas, cheias de clichês,
psicologismos e expressões culturais mundanas. A alegria como qualidade do
coração regenerado e abastecido das Escrituras, bem como a alma jubilosa pela
exposição da verdade no sermão, foi substituída por histeria, por emocionalismo
profissional e intencionalmente produzidos por toda sorte de recursos
audiovisuais. A contrição do coração, a teologia da cruz, o chamado à
santidade, foram trocados por “você merece ser feliz”, “não aceite o
sofrimento”, “seja um vitorioso” (geralmente se trata de vida financeira). As
Igrejas Evangélicas têm flertado perigosamente com os pecados de Tetzel e suas
indulgências. Vendem bênçãos em produtos ungidos, de sabonete e lenços à miniaturas
de cajados, relíquias de ‘santos vivos’, isto é, objetos de homens tido por
especiais, até pirâmides financeiras. O mercado da fé está em franco
crescimento e não conhece crises, antes, se alimenta das crises alheias.
Precisamos de novas teses que desafiem a relação da igreja, seus líderes e a
política (com alguns políticos em especial e como bancada representativa
inclusive). Cristo denominou seus discípulos como ovelhas e aproveitando-se
disso, não poucos pastores transformaram suas comunidades em currais
eleitorais, e como escrevi uma vez, o mais asqueroso atentado contra a
democracia é o voto de cajado, aquele em que o fiel é constrangido a votar no
candidato do pastor, quando ele mesmo não o é. De quantas teses mais
precisaríamos? Não sei ao certo, mas quinhentos anos depois, faríamos bem se
aceitássemos o gentil convite de Luthero para trocar ideias. Aceita?
Reverendo Luiz Fernando
é
Ministro Protestante na Igreja Presbiteriana Central de Itapira
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