Espiritualidade (II)
“Meditarei nos teus preceitos e darei atenção às tuas veredas. Tenho prazer nos teus decretos; não me esqueço da tua palavra.”
(Sl 118. 15-16).
A Igreja reformada sempre viveu uma tensão entre piedade e ortodoxia. Não raras vezes estas duas necessidades da vida cristã tocaram o extremismo a ponto de se excluírem quase por completo. Ortodoxia, isto é, o ensino e o cultivo da doutrina reta, sã, verdadeira, lógica, racional e fundamentada na literalidade da Bíblia, são como a âncora da alma em meio aos vendavais de heresias, modismos, falsos ensinos que grassam a religião. Sem ortodoxia não há segurança quanto à verdade e também não haverá uma ética e uma moral com valores absolutos. Tudo se torna relativo e plural. Entretanto, só a ortodoxia sem a abertura para experiências espirituais que “firam” a alma de amor e incendeiem o desejo e a vontade humana para se render, deleitar e querer mais de Deus e de seu amor e poder, é um caminho árido, sem vida, legalista que pode provocar endurecimento e esfriamento do amor nas relações comunitárias sem misericórdia, longanimidade ou humor. A piedade, a vida devocional, o cultivo de uma vida interior na íntima comunhão e amizade espiritual com Deus tem a propriedade de “temperar” a nossa personalidade, tornar-nos mais profundos e sensatos, mais sóbrios, equilibrados e humanos. A vida espiritual nos ajuda a domar os instintos da carne e nos dá maior sensibilidade espiritual pavimentando o caminho para uma convivência fraterna na comunidade menos estressante, mais calorosa, com mais alegria. Mas, vida espiritual descuidada da leitura, meditação e estudo das Escrituras facilmente descamba para a alienação, para o fanatismo e para o espírito de sectarismo. Para termos uma vida cristã saudável e uma Igreja equilibrada e sadia precisamos das duas realidades, a ortodoxia e a espiritualidade. Necessitamos de uma Teologia sólida, racional, Bíblica e de uma espiritualidade vibrante, profunda, com todas as faculdades da alma incendiadas de amor e desejos por Deus. A tradição reformada desde os seus inícios nunca quis organizar uma Igreja cerebral, intelectualóide, longe disso. Os reformadores sempre desejaram falar ao coração dos crentes e levá-los a experimentar das doçuras de Cristo e do céu. Sabiam, porém, que para a alma sentir de verdade precisa antes compreender a verdade. Fala-se á inteligência para se atingir os afetos. Prega-se às mentes para se tocar nas almas. Foi assim com os pietistas, com os puritanos, com os pregadores dos avivamentos e despertamentos. Mas, como um cristão e uma igreja podem cultivar estas duas dimensões ao mesmo tempo? Pelo estudo da Bíblia e pelo exercício das disciplinas espirituais recolhidas pela Igreja ao longo de sua bimilenar história. Dentre estas disciplinas se encontra a “Lectio Divina”. Esta modalidade de leitura bíblica foi a predileta dos pais da Igreja e foi sistematizada no século X por um monge cartuxo chamado Guigo. Entretanto, a “Lectio Divina”, também conhecida como leitura sapiencial da Bíblia como método de leitura e aplicação pode ser encontrada já na própria escritura, como atestam os Salmos 1 e 119 e a epistola de Tiago, apenas para ficar nestes exemplos. A leitura sapiencial das Escrituras se difere ligeiramente de um estudo Bíblico por seu escopo. Na lectio o que se deseja é saborear as delícias da Palavra de Deus e encontrar prazer nelas, é uma leitura devocional que leva em conta o estudo já feito anteriormente. Mas aqui, o que se deseja é meditar, memorizar, aquecer o coração, abastecer a alma de significado, orar com e a partir do texto, decorar uma sentença extraída do texto como um endereço, uma via espiritual para ser vivida naquele dia. O escopo da lectio é a contemplação da alma perdida de amor por seu Criador e Pai, inclinada de desejos afetuosos por seu Senhor e Redentor Jesus. Na “Lectio Divina” a contemplação prepara e estimula a ação que nos impede de viver um ativismo bobo, estéril e cansativo.
Luiz Fernando,
Pastor Mestre da IPCI
Nenhum comentário:
Postar um comentário