Rumo aos 500 anos
“Cuidado para que ninguém vos venha enredar
com sua vã filosofia e vãs sutilezas, conforme a tradição dos homens, conforme
os rudimentos do mundo e não segundo Cristo” (Cl 2.8).
Comemoramos nesse mês de outubro os 499 anos da
Reforma Luterana, movimento que deu início à Reforma da Igreja, desde
Wittemberg para todo o continente europeu. São quase infinitas as possiblidades
de abordagem e exploração deste tema. Da política, passando pelas artes,
filosofia, ciências, economia, antropologia, religião, não houve área da vida
humana que não fosse tocada pelas consequências nascidas da redescoberta das
Escrituras. Da reforma do culto segundo a Palavra surgiu uma nova compreensão
sobre o homem e sua existência. Talvez tudo tenha começado por um fenômeno
que ficou conhecido entre os eruditos por ‘desmagiamento’ da realidade. Na
idade média, como a Teologia, a Igreja e a Religião consistiam no centro da
vida do homem, mas uma Teologia sem a Bíblia, uma Igreja carcomida pela
corrupção e pela sede de poder e uma Religião sem entendimento, produziam uma
cosmovisão supersticiosa e escravizante. Tudo era entendido em termos
de maldição, pecado, demônios e aquilo que não podia ser explicado era reputado
como uma realidade sobrenatural, geralmente de mau agouro. Assim, toda a vida
era passada em temores, medos infundados e desarrazoados. O casamento era
considerado um pecado consentido. A mendicância e a pobreza indignas, uma
questão de vocação e penalidade, bem como o trabalho braçal uma punição, uma
maldição. A riqueza e a nobreza um direito divino que legitimava o
autoritarismo e as muitas desumanas arbitrariedades dentro e fora da Igreja. O
Papa, os bispos e padres eram tomados por seres quase angélicos, divinos, e que
estavam acima de qualquer questionamento. A santidade só era possível a esses,
aos monges, freiras e um ou outro excêntrico. Todos os demais estavam entregues
a uma espécie de loteria ou esperavam ser sorteados num tipo de consórcio para
a vida eterna. Os mais abastados
e alguns desesperados tentavam comprar o céu mediante as indulgências. Claro, o
poderoso e inescrupuloso clero da época associado a outros poderosos
preocupados com o seu ‘status quo’, lucravam muito com essa ignorância e esse
estado mágico das coisas. A Reforma não tirou a Teologia, a Igreja e a
religião do centro da vida das pessoas, não. O que a Reforma fez foi dar a
inteligência da fé pelo conhecimento das Escrituras, a fim de que o homem
pudesse ter uma compreensão moldada pelas verdades da Palavra. Isto é,
fez ver ao homem qual era o plano original de Deus deturpado e degenerado por
mentes e corações vazios de Deus e de seu conhecimento. Com a retomada do
estudo e da pregação das Escrituras, a Teologia, a Igreja e a Religião foram se
purificando e voltando às suas raízes. Como consequência inevitável o casamento,
por exemplo, deixou de ser visto como um mal menor, um pecado consentido, mas
foi assumido como uma bênção paradisíaca a que todos tinham o direito de
desfrutar para serem felizes. A pobreza e a mendicância deixaram de ser
uma vocação e um infortúnio fatalista e passaram a ser tratados como uma
questão de justiça social, política pública e dever da igreja e dos abastados
em socorrer. O trabalho, interpretado como maldição, como peso, foi reconhecido
como um meio para a realização da sublime vocação à santidade e o meio próprio
e legítimo de proteção social, justiça e promoção da vida. O clero
passou a ser visto como a vocação especial de alguns homens comuns, pecadores
redimidos, que eram reconhecidos, aceitos e autorizados pelos próprios
cristãos, para que na autoridade de Deus e por delegação dos fiéis,
comissionados e encarregados do pastorado. Homens cuja a autoridade não vinha
de um posto, cargo, título ou comenda, mas da humilde e nobre fidelidade ás
Escrituras no serviço aos irmãos. Os
“super crentes”, os excêntricos, os monges e as freiras, logo perderam sua
áurea e passaram a destoar da paisagem. Também uma nova visão política aos
poucos foi surgindo. O jugo de Roma quanto a religião também desprendeu-se dos
reis, príncipes e governantes que aderiram à Reforma. Muitas cidades-Estados,
bem como territórios aderiram à um sistema político, que pode ser entendido,
como a semente da democracia moderna. Um sistema em que o povo se fazia
representar por pessoas ilustres e ao mesmo tempo, podia escolher sob quais
leis queria viver. A história comprova que uma sociedade que reputa à Teologia,
a Igreja e a Religião uma total e completa irrelevância, a ponto de bani-la,
como o fizeram os Estados totalitários, falham tanto quanto àqueles que desejam
uma teocracia que não se deixa moldar e oxigenar pelas Escrituras. Da Reforma
aprendemos que qualquer um que queira sujeitar os homens a si usando a
Teologia, a Igreja ou a Religião, peca contra Deus e torna esses mesmos entes
desnecessários e perigosos até. A Reforma desejou devolver ao homem uma
consciência iluminada e ataviada apenas em Deus, para que cada um, depois de
conhecer a verdade, escolhesse de que maneira viveria melhor a sua liberdade e
sua história em face do mundo.
Reverendo Luiz Fernando
Ministro Reformado
da Igreja Presbiteriana Central de Itapira
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