Reformalatria
“Conheço as tuas obras, e o teu
trabalho, e a tua paciência, e que não podes sofrer os maus; e puseste à prova
os que dizem ser apóstolos, e o não são, e tu os achaste mentirosos. E
sofreste, e tens paciência; e trabalhaste pelo meu nome, e não te cansaste.
Tenho, porém, contra ti que deixaste o teu primeiro amor. Lembra-te, pois, de
onde caíste, e arrepende-te, e pratica as primeiras obras; quando não,
brevemente a ti virei, e tirarei do seu lugar o teu castiçal, se não te
arrependeres” (Ap 2.2-5).
O teólogo francês João Calvino gostava de ensinar, com
sólida base bíblica, que o coração do homem é uma fábrica de ídolos. Sempre que
o nosso coração se distancia milímetros de seu apego a Cristo, inevitável e
imediatamente ele fabrica uma incontável multidão de deuses que desejam lutar
dentro dele por cada nicho e cada altar, eclipsando assim a figura de Jesus
Cristo. Também com uma data tão auspiciosa como a abertura das comemorações dos
500 anos dos inícios da Reforma Protestante, pode e seguramente, nos oferece a
ocasião para grosseira idolatria. Há mesmo quem esteja até festejando o fato de
o Papa Francisco participar dessas comemorações na Suécia ou ainda sinta-se
valorizado e reconhecido porque um grupo de peregrinos luteranos foi recebido
com uma imagem de Lutero na Sala de audiências Paulo VI no Vaticano um dia
desses. Entretanto, quais são os reais perigos de uma ‘Reformalatria’? O
primeiro deles me parece ser ainda aquele de pensar que antes de 31 de outubro
de 1517 não havia cristianismo, igreja e evangelho no mundo. Acreditar que do
capítulo final de Atos 28 até os dias de Lutero a obra de Deus permaneceu numa
espécie de animação suspensa e a história da igreja não passa de uma tragédia
religiosa repleta de hereges e ofensas dirigidas a Deus em forma de culto. Na
verdade, a Reforma aconteceu porque esses e outros erros existiam mesmo. Mas
existiam não num vácuo, mas na dinâmica da vida da igreja estabelecida que
durante a sua história produziu pela graça de Deus homens e obras
extraordinários e a Reforma apenas intentou, vinda do mesmo Deus,
corrigir tais erros. Mesmo porque, os Reformadores eram homens que viviam
dentro daquela igreja histórica.
O segundo perigo é o da canonização dos Reformadores. Pensar e acreditar quer
eram todos perfeitos, homens que viviam em virtudes extraordinárias, quase
super-humanos. Atribuir a eles inerrância e infalibilidade porque chegaram a
algumas posições e interpretações bíblicas ou doutrinárias, faz-nos incorrer no
mesmo crime e erros daqueles que invocam a Tradição ou o magistério Papal como
autoridade equivalente às Escrituras. Isso também é idolatria. Não
restam dúvidas, nossos Reformadores foram usados por Deus como instrumentos
para o início e a continuação e sistematização da Reforma e muitas de suas
contribuições são perenes. Mas eles não inventaram a roda, talvez, no máximo a
descobriram e melhoraram o seu uso. Um terceiro perigo é o de se
desejar repetir acrítica e anacronicamente o estilo de culto, o tipo da
liturgia, cantos e usos e costumes da igreja dos séculos 16, 17 e 18, como os
únicos aceitáveis por Deus e os únicos capazes de dar à Igreja uma identidade
cristã. É um erro pensar que devemos pregar usando de maneira absoluta os
mesmos métodos e conceitos de comunicação e transmissão de conteúdos desde o
púlpito ou a mesma didática da época para a catequese (o conteúdo, esse sim,
perene). Também é um erro pensar numa forma única de estética para o templo e a
própria ação litúrgica. Evidentemente que os elementos de culto empregados
pelos reformadores são indeléveis e inegociáveis, mas não porque fossem por
eles estabelecidos, mas porque são Bíblicos e se encontram presentes nos dois
cânones das Escrituras e foram firmemente estabelecidos por Deus. Uma quarta
sedução à idolatria é concluir que em nossos dias não existam contribuições
válidas para a igreja e que tudo se encontra tão perdido e corrompido que só
uma volta radical ao passado glorioso de nossos heróis pode nos salvar. Além de
pretencioso esse pensamento é ingênuo, para não dizer infantil. Os nossos dias
trazem consigo não só inúmeros e inimagináveis oportunidades, como também
ferramentas maravilhosas, um acúmulo de conhecimento sistematizado que os
Reformadores jamais sonharam possuir. Pesquisas científicas avançadas nas áreas
da história, arqueologia, línguas antigas, antropologia cultural e etc., nos
fazem penetrar com muito mais profundidade as maravilhas da Bíblia. Novas
Universidades, novos e equipados seminários, a enorme profusão de editoras e
novos autores, teólogos e pesquisadores nos enchem de esperança quanto ao
futuro da Igreja. Mas, nenhuma idolatria é mais perigosa do que esquecer que Cristo é o
Senhor e Cabeça da Igreja. Que Ele é o mais interessado em sua eterna
juventude, vitalidade, pureza e fidelidade. Que Ele mesmo é quem
empodera essa igreja por meio do seu Espírito, que levanta, comissiona e envia
homens, pecadores e frágeis, para continuar reformando e restaurando a vida da
igreja até o dia em que Ele mesmo, em pessoa, virá busca-la e a conduzirá para
um tempo em que as Reformas já não serão necessárias e nem mesmo relembradas.
Reverendo Luiz Fernando é
ministro reformado na Igreja Presbiteriana
Central de Itapira
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