Pés de bailarina
“Amados, visto que temos essas promessas, purifiquemo-nos
de tudo o que contamina o corpo e o espírito, aperfeiçoando a santidade no
temor de Deus” (2 Co 7.1).
Esta semana enquanto eu “zapeava” a TV me deparei com
um canal de arte e cultura que exibia um documentário sobre a vida dos
integrantes do balé Bolshoi. Na falta de algo mais interessante, resolvi
assistir o documentário, confesso que fiquei perplexo com o que vi. A duríssima
rotina de um bailarino de alto nível é coisa para poucos. São horas
intermináveis de exercícios físicos para condicionamento, torneamento e
tonificação muscular, alongamento e claro, sem falar nos movimentos que são
repetidos à exaustão. Mais tarde, dias incansáveis de ensaios da coreografia,
as cenas são repetidas com tanta perfeição, que um leigo como eu tem até a
sensação de estar assistindo a uma cena eternamente rebobinada. O resultado de
tanto esforço, de tanta dedicação e de tanto sacrifício pessoal, é aquele que
assistimos quando as cortinas sobem pelos palcos do mundo. Um encanto, uma
magia, os corpos parecem levitar de tanta graça e beleza e os movimentos
conduzem a nossa imaginação trama a dentro. Após a apresentação do Balé Bolshoi
em Praga, na República Checa, os documentaristas foram até os camarins para mostrar
aquilo que raramente é visto pelo público, as marcas físicas de tanto esforço.
Os pés de uma bailarina não refletem em nada a graciosidade de seu corpo
definido e belamente modelado. Os pés são “deformados”, calos, hematomas e até
algumas lesões com sangue são perceptíveis. De pronto fui conduzido a uma outra
realidade que demanda igual dedicação e esforço, mas infelizmente pouco disso
se pode testemunhar. Falo do discipulado cristão. Falo daquelas coisas a que os
cristãos estão ordenados a fazer e que nem sempre obedecem. Um dos aspectos da
Grande Comissão dizia respeito a “ensinando-os
a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado” (Mt 28. 20 a ). Dallas
Willard chama a nossa atenção ao afirmar que esta é a parte da ordem dada por
Jesus que podemos
chamar de a Grande Omissão. Tornar-se discípulo de Jesus e andar como Ele andou
ou seguir as suas pisaduras, como fala Pedro em sua epístola, significa viver
como Jesus nos bastidores da vida, quando o local destinado à plateia está
vazio e as cortinas fechadas, isto é, viver na “sequela Christi” dentro do
ordinário da vida e dando atenção ao que o próprio Jesus fazia. Quando vemos
Jesus Cristo andando sobre as águas, repreendendo o vento, expulsando demônios,
multiplicando pães e peixes e falando Palavras cheias de graça e de verdade,
podemos ser tentados a “magiar” estas verdades e simplesmente ignorar que
Jesus, em sua humanidade, em sua corporeidade, viveu uma vida disciplinada.
Jesus cultivou as principais disciplinas espirituais que não só condicionam a
nossa espiritualidade, domam a nossa vontade e educam os nossos sentimentos,
mas também subjuga o corpo e ensina a obediência: “Durante os seus dias de
vida na terra, Jesus ofereceu orações e súplicas, em alta voz e com lágrimas,
àquele que o podia salvar da morte, sendo ouvido por causa da sua reverente
submissão. Embora sendo Filho, ele aprendeu a obedecer por meio daquilo que
sofreu”
(Hb 5.7,8). E quais são essas disciplinas que Jesus observou e que de fato,
deixou-nos como exemplo a ser imitado para o nosso aperfeiçoamento espiritual?
Pelo menos essas que os evangelistas narram: Jesus cultivava o silêncio e a solidão para intimidade e
colóquio com Deus: Mt 14.13; Retirava-se para orar ainda antes da aurora: Mc 1.35; jejuava: Mt 4.2; costumeiramente frequentava a Sinagoga e lia as Escrituras: Mc 1.21 e Lc 4. 16;
sem falar na voluntária obediência
aos seus pais: Lc 2.21. De tudo isso podemos aprender que ninguém irá longe no
discipulado cristão, ninguém crescerá na Graça e no conhecimento e tão pouco
poderá resistir ás tentações e progredir no caminho da santificação se tudo o
que realizar não passar de uma vida sob os holofotes. Ou seja, se toda a sua
caminhada cristã se resumir ou nas reuniões públicas e formais da congregação
ou em uma piedade ‘pasteurizada’ com momentos rápidos, fugazes e superficiais
nas devocionais diárias. Assim como todo grande bailarino submete-se a uma
rotina disciplinada e exaustiva de treinos e ensaios, como todo atleta de alto
nível se sacrifica em longas e disciplinadas rotinas para chegar próximo à
perfeição, também a vida cristã, o discipulado, a espiritualidade também deve
ser disciplinada, submetida às orientações e impulsos da graça, centradas no
evangelho, promovidas pelo amor a Deus e ao próximo e abundante em obras de
justiça e caridade. Mas, é preciso disciplinar e cultivar as disciplinas
espirituais, se Jesus submeteu-se numa vida de intensa disciplina, porque nós
daríamos qualquer desculpa para viver confortável e relaxadamente? Não se trata
de obter a salvação por meio dessas disciplinas, mas desenvolvê-la por meio
delas na santificação e na semelhança com Cristo: Fp 2.12.
Luiz Fernando é ministro da Igreja Presbiteriana Central de Itapira,
professor de Teologia Pastoral e Bioética no Seminário Presbiteriano do Sul,
de Filosofia na Faculdade Internacional de Teologia Reformada – Fitref e
de História das Missões no Perspectivas Brasil.
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